Crítica: O Bom Gigante Amigo | Steven Spielberg

O Bom Gigante Amigo(Big Friendly Giant, 2016, EUA)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Melissa Mathison, Roald Dahl
Elenco: Mark Rylance, Ruby Barnhill, Penelope Wilton
Classificação: 
Sinopse: O roteiro de Melissa Mathison adapta o livro homônimo do escritor Roald Dahl, um dos autores mais premiados de obras infantis como A Fantástica o
Fábrica de Chocolate e Matilda. Aqui, agora se assemelhando muito com uma história de ninar, o texto traz a história da pequena Sophie, uma garotinha inglesa que vive em um orfanato londrino. Sofrendo de insônia, a garota sempre repete a mesma rotina em suas perambulações noturnas entre as instalações do casarão.
Quando, enfim, se prepara para dormir, às três horas da manhã, Sophie percebe um movimento nada ordinário na rua defronte a sua enorme janela. Ao sair para a sacada, tremendo de medo, Sophie encara um enorme gigante se escondendo na esquina. Ao perceber que é espionado, o imenso homem a captura e leva a garota até a inexplorada Terra dos Gigantes. Lá, ele terá que aprender como lidar com Sophie e suas muitas tentativas de fuga. Entretanto, o perigo maior, tanto para o bom gigante amigo e Sophie, são os outros habitantes da ilha, devoradores de humanos.


Texto
Se houve alguma colaboração na história do cinema que mais tinha necessidade de acontecer era a de Steven Spielberg com os Estúdios Disney. Com o currículo contando com muitas aventuras que fizeram alegrias de crianças e jovens como E.T.: O Extraterrestre, a franquia Indiana JonesAs Aventuras de Tintim, Hook Jurassic Park, uma parceria entre Spielberg e Disney poderia render um filme que unisse o melhor dos dois mundos.
Porém, o resultado dessa inesperada aliança foge totalmente dos trabalhos moderadamente histéricos da Disney como Procurando Dory ou dos muito histéricos como Mogli: O Menino Lobo. É até mesmo um filme muito inusitado para os padrões novos e clássicos de Spielberg. Como havia dito na crítica de Mogli, o calendário centrado da Disney comportou O Bom Gigante Amigo como o seu blockbuster principal para o fim do verão americano – uma faixa que só traz más lembranças para o estúdio graças aos fracassos sucedidos de John Carter, O Cavaleiro Solitário eTomorrowland. Mais uma vez, o filme não caiu nas graças da bilheteria, porém, desta vez, trata-se de uma obra muito superior.
A verdade é que BGA é um daqueles filmes paradoxais que enriquecem, e muito, a sétima arte. Ou seja, é um filme consideravelmente chato, mas também é um dos mais belos que verá neste ano.
Como em muitos outros trabalhos autorais de Spielberg, o que manda no filme é mesmo a essência fantástica do texto. Entretanto, apesar da excelente qualidade, é bem evidente que não se trata de uma história para crianças, pois, mesmo apropriada, é bastante tediosa – certamente a história deve funcionar melhor no livro. Aliás, é isso o que mais intriga em O Bom Gigante Amigo. Trata-se de um filme que não consegue se comunicar bem com a maioria do público por conta da atmosfera serena de profunda contemplação pouco habitual para blockbusters desse porte.
O fato de ser um longa da Disney contemporânea só assusta ainda mais, pois certamente trata-se de um projeto que foge dos padrões do estúdio – evidência incontestável de como Spielberg tem poder nos trabalhos que assume. E isso, na minha opinião, é o grande diferencial positivo de seu filme.
A roteirista dedica diversos minutos para fundamentar bem a mitologia que o enredo traz assim como a essência de seus personagens ficam cada vez mais nítidas. É através dos ingênuos e fofos diálogos entre Sophie e BGA que isso é feito, aliás. E são bastante enriquecedores, brincando com dialetos atrapalhados dos gigantes, a importância narrativa e simbológica dos sonhos e revelando o passado sofrido dos dois.
Trabalhando no clichê manjado sem novas adições, Mathison somente peca em relação aos antagonistas, outros gigantes mal-encarados muito maiores que o BGA. A motivação deles é básica, ordinária, mas combina com a essência simplória dos personagens. Graças à boa construção dos protagonistas e das performances ótimas de Ruby Barnhill e Mark Rylance, o conflito funciona por nos deixar apreensivos com a ameaça que os gigantes representam, pois fica implícito um episódio tenebroso envolvendo todos eles.
Assim como Ponte dos Espiõesesse novo filme de Spielberg aposta muito mais na “contação” do que na ação propriamente realizada. Essas, quando surgem, são bastante ligeiras como até mesmo o clímax da história.
Mesmo com o trabalho maravilhoso na relação dos protagonistas, a história reserva uma surpresa que chega somente após oitenta minutos de filme. É a reviravolta mais imprevisível que eu tenha visto nos últimos anos e, ainda assim, de muita qualidade brincando com conceitos vistos em A Origem. Se trata de uma sequência surreal que injeta nova vida ao filme, mesmo durando apenas pouco mais de quinze minutos.
O mais impressionante é que todos os conceitos, para tornar essa reviravolta bem justificada, foram inseridos com precisão cirúrgica nas cenas anteriores. Mesmo partindo de uma ideia absolutamente absurda, ela tem toda a racionalidade que predomina no texto. Nisso, acontece o mais improvável, uma piada escatológica genial. Somente Spielberg e sua magistral condução de cena para fazer eu rir como uma criança com uma das vertentes mais simples da comédia. Aliás, todo o texto de humor dessa sequência aposta no nonsense. Logo, a figura do diretor é de importância extrema para contruir o timing exato. Há até mesmo brincadeiras com pontos de vista, escolha de planos, dilatações de cenas que conversam com o nível de conhecimento do espectador em comparação com o do personagem.
A execução da direção de Spielberg ainda é a melhor quando se trata de câmera invisível. A dedicação visual é estonteante com grande organicidade entre um plano ou outro. Toda a movimentação da graciosa câmera é sutil sempre apostando na naturalidade do movimento puxado pelo magnetismo da encenação que o diretor cria. É simplesmente poesia em movimento. Mas dessa vez, poesia que remete ao cinema asiático de Kurosawa e Ozu misturada com sua técnica de direção.
Spielberg sempre foi um gênio no manejo de câmera e de decupagem. Isso vem desde Encurralado. Mas tirando As Aventuras de Tintim, essa é a primeira vez em anos que ele trabalha em um filme com auxílio intenso de computação gráfica. A ilusão realmente funciona pelo detalhamento de texturas, cores e animações fluidas somente devendo na qualidade duvidosa do resultado final dos outros gigantes.
Enquanto seu cinematografista favorito, Janusz Kaminsky, ainda trabalha com as maravilhosas e atmosféricas luzes duras, altas luzes, névoa e contraluz podendo agora explorar cores mais vivas e interessantes, Spielberg adota um estilo de direção que realmente remete ao ritmo asiático clássico, mas o traduzindo para os anos 2010 chegando próximo do modo que Miyazaki conduzia algumas obras recentes do Studio Ghibli. Aliás, o diretor também insere algumas referências muito nostálgicas de alguns filmes marcantes de sua carreira.
Devido a tecnologia da época, a mobilidade da câmera sempre fora um enorme desafio para diversos grandes diretores dos anos 1940 e 50. Sem esse empecilho e aproveitando muito o suporte fantástico que a computação gráfica oferece, Spielberg mistura a magia da contemplação com efeitos elegantes de movimentação visual.
Movimentação visual não é o mesmo que movimentação de câmera, ainda que o diretor use os dois recursos aqui. A grande maioria dos filmes de Kurosawa se traduziam pela força da movimentação visual mesmo que os planos permanecessem estáticos – vide Os Sete Samurais. A grandiosidade dos dois elementos combinados em O Bom Gigante Amigo vem sempre quando surge um plano sequência – esse é, de longe, o filme que melhor e mais utiliza o recurso nesse cinema de 2016.
Os planos sequência sempre foram uma das maiores marcas autorais de Steven Spielberg, além dos sempre presentesreaction shots repletos de olhares que carregam seu melodrama. A graça dessa técnica de Spielberg é o modo que ele realiza sempre visando que nós não notemos de que se trata de fato de um plano sequência. Quando ele resolver segurar o plano, o faz sempre de modo orgânico alterando as suas riquíssimas composições visuais com afinco. Temos dois particularmente encantadores: o que encerra o clímax e um que ocorre quando Sophie cai nas rudimentares tubulações da casa do gigante.
Para completar o brilhantismo técnico artístico, o favorito compositor de longas datas, John Williams, retorna com uma das trilhas musicais mais doces e emocionantes que já compôs em tempos. Deve haver alguma magia que une esses dois profissionais para criarem resultados maravilhosos. Explicitando totalmente sua linha romântica e homenageando o uso clássico da música nos filmes Disney, Williams trabalha com tons melódicos leves, saltitantes e irrequietos vindos através de harpas e uso intenso de flautas para preencher os temas que acompanham Sophie.
Para os gigantes, há uma grande distinção de temas. Como o Bom Gigante Amigo é uma criatura mais esguia e ágil, Williams usa instrumentos de sopro mais agudos e violinos ora entusiasmados, ora levemente melancólicos. Os antagonistas, quando surgem em cena, ganham elementos sonoros mais pesados e abafados, mas acompanhados de ritmos nada ameaçadores e sim bobos refletindo diretamente o espírito dos personagens.
Já outras composições, como as destinadas para a conclusão do filme ou que trabalham em cima de passagens que tratam sobre o futuro de Sophie rasgam no melodrama. Flautas bem menos agitadas surgem, de tons melódicos belos, porém um tanto pálidos e tristes, pois indicam que a relação de incrível amizade entre os dois terá que ter um inevitável fim. Mais uma vez, John Williams criou música que move.
O Bom Gigante Amigo é a prova concreta que Steven Spielberg retornou com tudo para sua forma encantadora como um ápice de talento e vontade de trabalho dessa fase distinta de sua carreira: a contemplação serena e bela que abraça e reflete o espírito jovem de um criador já na terceira idade. Um filme sobre velhice, juventude, solidão, esperança, onipresença e amizade. São aspectos profundos que parecem dialogar a todo momento com Spielberg. Logo, todo esse ritmo da obra refletir tanto o cinema asiático dos realizadores citados assim como boa parte das animações do Studio Ghibli não é por mera coincidência.
Como já apontado, o filme é realmente uma incógnita para escalar uma recomendação baseado no gosto de cada um. Há de se considerar que é quase certo que o público destinado não fique tão envolvido com uma história que aposta tanto em diálogos e contemplação em vez da ação desenfreada. Porém, é impossível não parabenizar a Disney pela escolha muito corajosa de entregar um longa tão introspectivo e tímido como esse mesmo sabendo que se tornaria um fracasso de bilheteria.
Steven Spielberg é um dos melhores realizadores da História do Cinema e merece ser celebrado por isso em vida e também na posterioridade. Todos os valores passados pelos seus filmes em minha infância serão carregados comigo até o fim. Agora, no sentido profissional, continua um dos melhores professores de Cinema que alguém poderia pedir.

Comente com o Facebook:

Um comentário:

  1. Apesar do trailer parecer ser muito bom, acho que o fracasso de bilheteria se deve por conta de ter sido lançado com outros filmes que certamente dariam muito mais bilheteria que ele (Procurando Dory, etc). Parece ser "um bom filme" *trocadilho*.
    Vou esperar sair em DVD pra assistir <3
    Beijinhos!
    Livros, Amor e Mais

    ResponderExcluir