dica de filmes - AS OBRAS DE PETER GREENAWAY


 PETER GREENAWAY 
O Cinema não passa de livro ilustrado

São frases de Greenaway, representativas de seu pensamento,

 ‘sempre teve  o desejo de participar de tudo o que diz respeito ao  aprendizado visual. [...]  as sofisticações da estética da pintura nos últimos  dois mil anos moldaram a nossa visão e interpretação do mundo, continuando da mesma forma até os dias de hoje. [...]  ter desejado que o cinema assumisse essa responsabilidade, mas este infelizmente raramente conseguiu, por ser um meio essencialmente baseado no texto, e não na imagem.’

Segundo Greenaway, seus longas-metragens, a partir de O contrato do amor (The Draughtsman’s Contract) (1982), são filmes que buscam criar um equilíbrio entre os objetivos visuais profundos e a acessibilidade. Dissimulação: “dourar a pílula do radicalismo visual extremo com muito daquilo que o público de cinema esperava do cinema. Sempre queria dizer que não estava realmente dizendo a verdade, ou pelo menos, a verdade que queria dizer”.
               Uma das personagens diz em Drowning by Numbers (1988): quantas folhas existem numa árvore, quantos peixes no mar, quantos cabelos na cabeça? A obra de Greenaway se movimenta e desenha, feita de descrições, inventários incessantes, infinitos. Os filmes parecem sempre como falsos documentários.  Tudo é similar ao ato de dissecar, acumular, relacionar, registrar, descrever, guardar.  Talvez devêssemos falar de uma mente numérico-geométrica – que se pode comprovar no gosto: split-screen, simetria, mapeamento, – e algébrica, – que se constata no gosto pela soma de objetos e nomes, multiplicação de referências e textos.
               Em O Livro de Cabeceira o corpo é a página do texto que é lido e relatado e poetisado e desenhado em ideogramas, palmilhado, mapeado, milimetrado. O filme de Greenaway segue o princípio de edição do ideograma. É meio de quebrar a linearidade. Não apenas a assimilação de elementos vizinhos dão sentido à montagem, mas, elementos mais distantes quebram a linearidade com o uso de paralelismo. PG segue as pegadas do mestre Eisenstein que  defendia a “montagem inteligente”, que seria uma montagem que tivesse como objetivo, ao unir dois elementos, criar um conflito que gerasse um terceiro elemento diferente dos dois (montagem dialética). PG é mais radical n'O Livro de Cabeceira do que seu mestre. Aqui os próprios elementos não param de mudar com as relações de tempo nas quais entram, e os termos, com suas conexões.
               Tulse Luper Suitcases, - obra live act, -  tem estrutura calcada em números, episódios e elementos dispersos. O título completo do filme é Tulse Luper Suitcases – a life history in 16 episodes. A primeira subdivisão do filme são os 16 episódios. O filme trata da história da vida de Tulse Luper,  reconstruída através do descobrimento de 92 maletas que o protagonista teria deixado pelo mundo. Depois o  filme mostra  92 objetos para representar o mundo. Neste filme temos dispersão e intercalação, sem ordem numérica: só valem os fatos da vida de Luper. Mas há sistematização na aparição das maletas.  Por ordem numérica.  Cada maleta um simbolismo. O filme é uma rede neural – similar aos rizomas de Deleuze, - por onde andam as relações e associações. Não é feito de unidades, mas de dimensões, ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele transborda. Não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear como diz (DELEUZE e GUATTARI. O que interessa é justamente a reconstrução desse percurso realizada através da conexão dos elementos encontrados que se relacionam entre si.
               Em A walk through H, o ornitologista relata sua jornada após a morte em direção a um lugar designado pela letra H. O ornitologista segue 92 mapas ordenados por um amigo, Tulse Luper, um aficionado por pássaros que é também escritor, cartógrafo e cineasta. O mesmo Luper.  Peter TULSE Greenaway  tem obsessão por mapas. Para ele na era  moderna os mapas deixaram de ser poéticos para se tornarem meras ferramentas, mesmo assim, continuam tendo potencialidades de nos mostrar onde estamos em tempo e espaço.  Greenaway utilizou mapas em seus filmes mais de uma vez como em A walk through H.
Em Prospero’s books, o diretor hipermidiático aproxima-se do texto clássico de Shakespeare e  reveste-o dos avanços tecnológicos do hipertexto contemporâneo. O texto clássico está na tela (em sobreposição ou subposição). Greenaway agrega elementos reconstrutores e re/significativos. Narrativa multimidiática. Fusões. PG chamou isso de montagem vertical, ou montagem em profundidade, ou, ainda, montagem polifônica.  PG  atenta para o fato básico de a narrativa fílmica ser dada pela montagem, processo pelo qual dois campos semânticos justapostos se imbricam e criam uma terceira dimensão de sentido. Logo na  primeira sequencia,  imagem, escrita, cores, coreografia, escultura, pintura estão juntas para criar a  roteirização hipermidiática.
Em a A ronda noturna (2007) temos a formação e obsessão de Peter Greenaway pelo campo das artes plásticas (especificamente da pintura);  é o que dá imagem, texto e contexto a uma obra cinematográfica de longa duração. Temos a releitura/adaptação do retrato pintado em 1642 por Rembrandt van Rijn, em que representa um grupo de militares liderados pelo capitão Frans Cocq. Trata-se de uma ficção em torno do processo criativo do pintor. Greenaway não abandona suas preferências pelos enquadramentos de simetria precisa. Greenaway decupa seu filme de modo que há uma intercalação de enquadramentos abertos, que dão conta de um grande grupo de personagens, com planos com um menor número de figuras humanas, geralmente com dois ou três indivíduos. São citações do enquadramento feito pela pintura holandesa. O que assistimos é uma tentativa de dar sentido ao não explicável.
O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), é leitura da gula, frame by frame, tendo o ladrão como o falador do filme; além de falador também é aquele que espeta as pessoas sendo seu nome Spica servindo como corruptela de Speaker e de Spike. As  agressões se dão ou verbalmente, ou pelo viés da comida. Spica irá ferir com sopas, com líquidos e até mesmo com um garfo (espeto).  O ápice de sua crueldade, um assassinato, será também através da alimentação, quando o amante de sua esposa será morto sendo obrigado a ingerir páginas e páginas da extensa biblioteca. A gula. Evágrio Pôntico, no século IV, fala  da gula,

A gula é a mãe da luxúria, o alimento de maus pensamentos, a preguiça de jejuar, o obstáculo ao asceticismo, o temor do propósito moral, a imaginação da comida, o delineador dos temperos, a inexperiência desenfreada, frenesi descontrolado, receptáculo da moléstia, inveja da saúde, obstrução das passagens corporais, gemido das vísceras, o extremo dos ultrajes, aliada da luxúria, poluição do intelecto, fraqueza do corpo, sono difícil, morte sombria.

               Greenaway arranja seus atores sobre bancadas, da mesma forma como vemos, ao fundo, alimentos, naturezas-mortas organizadas.
Vertical Features Remake (1978) e The Falls (1980). Recorrência ao documentário. Vivência como montador e diretor, procedimentos ensaístas que emolduram as narrativas (e também as anti-narrativas), e que apontam para a presença do comentário sobre os temas, algo oscilante entre a ficção e a não ficção, próprio do gênero ensaio, dúbio em sua natureza entre o literário e o filosófico.
A TV Dante (1989), na televisão. O objetivo de destacar o diálogo com o universo literário, ponto de partida para procedimentos de hibridização entre o eletrônico, o cinematográfico e o digital. A TV Dante é um marco da apropriação do universo eletrônico e digital, tanto no que diz respeito à investigação do instrumental tecnológico como na tradução da obra literária, expandida pela polifonia com que é construída. A partir de então, Greenaway se familiarizaria com recursos de edição não-linear, as ferramentas para sobrepor imagens e realizar narrativas não-lineares.

Em o Bebê Santo de Macon podemos notar a profusão de detalhes e imagens e pessoas. Mas todos parecem cientes atores, quando atrás das cortinas, de que aquilo não é nada mais que farsa, mesmo que simultaneamente ocorra algo  de vero sob o palco. Os requintes e o detalhe das mortes na luta entre a mulher e o  homem soam a exposição farta de sangue e entranhas. Os detalhes da biologia e do orgânico. O destrinchar das carnes. A exploração das crendices e o poder autoritário sobre crentes e fiéis. Diz Marcus Motta que cinema e teatro, atividades espetaculares, co-participam de um histórico diálogo que redefine conceitos e práticas de ambos. [...]  Uma reflexão a partir da dramaturgia fílmica de O bebê de Mâcon  efetiva o esclarecimento do jogo de apropriações e transformações existente em eventos inter artísticos e multidimensionais.
Assistir a obra de Peter Greenaway é viajar pelo insólito amplamente racional. Não é obra para iniciantes em cinema, mas para aqueles que já se livraram do cinema de historinhas e da sessão da tarde. 

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