Título: Silent Hill
Empresa: Konami
O enredo de Silent Hill começa
com o protagonista Harry Mason viajando de férias com sua filha adotiva Cheryl para
a cidade homônima. Harry acaba sofrendo um acidente e perdendo a consciência ao
tentar desviar o carro de uma garota misteriosa que aparece no meio da estrada
próxima à cidade, acordando depois apenas para descobrir que sua filha
despareceu. O que se inicia como uma busca pela sua filha perdida acaba se
desdobrando em um mistério acerca da natureza estranha da cidade, com sua névoa
constante e inexplicável, suas transformações abruptas em uma versão paralela
surreal e grotesca, suas seitas ocultistas e seus habitantes com passados
obscuros.
Resenha
A palavra “imersão” é usada cada
vez com mais frequência dentro da indústria dos games. Um reflexo direto da
evolução extremamente acelerada da tecnologia, que permite produtos com uma
qualidade cada vez maior de gráficos e áudio, gerando experiências
progressivamente mais realistas e envolventes do ponto de vista sensorial. O
problema é a negligência constante dada a outros aspectos tão ou mais
importantes para a criação dessa “imersão”. Os games são por natureza uma mídia
interativa, e possuem os mais variados recursos para criar uma narrativa
imersiva para além de somente o visual e o sonoro. É engraçado notar como um
jogo de 1999, lançado em um sistema limitado como o Playstation 1, consegue
ainda hoje ser um exemplo de como criar uma experiência realmente imersiva e
impactante mesmo com gráficos poligonais modestos, dublagem tosca e
jogabilidade truncada.
A história do jogo é extremamente
complexa, abstrata e difícil de seguir. Os desenvolvedores do jogo foram
fortemente inspirados pelos filmes de David Lynch (diretor reconhecido pelas suas
obras oníricas e abstratas) e isso é nitidamente perceptível na construção
narrativa do jogo. Nada fica claro, a linha ente o que é real ou não se
dissolve imediatamente e desde os primeiros momentos a história já estabelece o
seu tom enigmático, vago e subjetivo. Somos colocados no ponto de vista de
Harry, numa situação completamente intangível aos nossos padrões humanos de
compreensão e a história do jogo reforça isso através do seu caráter surreal e
confuso, oferecendo cada vez mais perguntas e guardando as poucas – e discretas
– respostas para o final. Apesar disso, não se deve imaginar que o enredo é
ruim, pelo contrário, a história é extremamente instigante, traz personagens
interessantes e alguns momentos realmente emocionantes, além disso, merece
reconhecimento por tocar em questões como corrupção, vício, morte, religião,
solidão e outras questões da natureza humana em geral. Claro que tudo isso é
abordado de maneira subjetiva e fragmentada, tornando o ato de interpretar o
enredo do jogo um enigma por si só, mas já estão presentes aqui as sementes que
tornariam a franquia Silent Hill uma das series com o enredo e a mitologia mais
maduros e interessantes dos games.
O cineasta David Lynch é uma das maiores influências no tom e na narrativa de Silent Hill |
Visualmente o jogo é meio
ambíguo: Por um lado os gráficos limitados do Playstation 1 são visivelmente
datados, com personagens poligonais esquisitos e texturas de baixa resolução;
por outro, a direção de arte compensa todas as limitações tecnológicas. Os
cenários são construídos com bastante cuidado e esmero, a cidade de Silent Hill
tem um quê bastante realista, uma vez que os desenvolvedores do jogo utilizaram
várias referências reais na criação dos ambientes. Escolas, igrejas, postos de
gasolina e becos sinistros, tudo é apresentado de maneira convincente e
imersiva e em um ambiente completamente 3D, o que torna o jogo relativamente
inovador no contexto dos primeiros anos do Playstation 1, onde a maioria dos
jogos utilizava cenários pré renderizados.
Apesar dos gráficos datados, a cidade de Silent Hill é detalhada e convincente |
Porém, o que realmente brilha é a
versão paralela da cidade. Aqui os desenvolvedores demonstraram todo o seu
talento ao criar uma atmosfera de pesadelo única e inovadora: superfícies
desgastadas por ferrugem e musgo; correntes, arames e grades cobrindo a maior
parte dos cenários; poças de sangue e corpos disformes distribuídos por todos
os cantos; uma paleta de cores regada a tons ameaçadores de vermelho, amarelo e
marrom; uso da escuridão quase total para reforçar a incapacidade do personagem
(e do jogador) de compreender aquele ambiente. Tudo isso acaba construindo uma
estética fortíssima de decadência e perversão que influenciou inúmeros jogos e
filmes posteriores, além de criar um contraste interessantíssimo com a versão
real de Silent Hill e proporcionar um crescente desconforto e senso de perigo.
A estética de pesadelo da versão paralela de Silent Hill é brilhante até hoje |
Alguns outros aspectos também
contribuem para elevar o visual do jogo. A já citada névoa constante (na versão
real de Silent Hill) e a escuridão (na versão pesadelo) foram na verdade
artifícios técnicos utilizados para compensar a baixa capacidade do Playstation
1 de renderizar objetos e cenários distantes, felizmente isso acaba resultando
em uma atmosfera ainda mais claustrofóbica e leva à necessidade da utilização
da lanterna para navegar pelos ambientes, o que cria um efeito de iluminação
bonito e imersivo. Por último o uso inteligente da câmera fecha com chave de
ouro a concepção visual do jogo, sempre colocada em ângulos interessantes e
evocativos e realizando movimentos extremamente expressivos, a câmera
transborda personalidade e é utilizada de maneira artística, com ecos de filme
noir e expressionismo alemão. É possível considerar que o primeiro Silent Hill
já era um jogo mais “cinematográfico” do que inúmeras megaproduções
contemporâneas.
Movimentos expressivos de câmera e uso efetivo da iluminação tornam o jogo cinematográfico |
Por último, é necessário dar
destaque especial ao design dos monstros, que é um dos pontos mais marcantes e
inovadores da franquia e influencia para inúmeras outras obras que vieram
depois. Ao invés de se ater a estereótipos consagrados do terror como zumbis,
vampiros, fantasmas, lobisomens, etc. a equipe por trás do jogo investiu em
conceitos extremamente originais, criando criaturas cujos visuais remetiam ora
a aspectos psicológicos dos personagens ora a temas e conceitos do enredo.
Buscando inspiração em pintores como Francis Bacon e Hieronymus Bosch, assim
como em obras de arte moderna e em experiências pessoais dos artistas
envolvidos na criação do jogo, o resultado são criaturas extremamente criativas,
simbólicas e perturbadoras, que adicionam novas camadas de significados à
história do jogo e cumprem com louvor a função de assustar o jogador. É muito
difícil não sentir um calafrio ao ver pela primeira vez um dos Rompers saltando em cima do Harry e o
dilacerando. Essa filosofia na concepção dos monstros se aperfeiçoaria nas
sequências – culminando no icônico “Cabeça de pirâmide” – mas já encontra sua
essência aqui no primeiro jogo da saga.
Alguns trabalhos de Francis Bacon |
Alguns dos monstros de Silent Hill |
Todo esse cuidado na direção de
arte e na concepção visual do jogo vem acompanhado de um uso magistral de
áudio. Os efeitos sonoros dos monstros especialmente são muito marcantes e
sinistros, desde as risadinhas macabras da Grey
Child e dos grunhidos lamentosos do Puppet
Doctor até o bater das asas e o grasnar do Air Screamer, cada criatura é tão definida pelo seu efeito sonoro
quanto pelo seu visual. Além disso, temos a estática do rádio que cresce sempre
que um monstro está perto, criando tensão através da associação inconsciente
automática que o jogador faz daquele som com o perigo – especialmente quando o
monstro ainda não está visível – e a famosa sirene que anuncia a mudança da
Silent Hill normal para a sua versão sombria. É um trabalho de mixagem e edição
incrível e um dos principais fatores a manter o jogo assustador e intenso até
hoje, uma vez que os visuais datados sozinhos não seriam nem de longe tão impactantes
para o público contemporâneo.
Para completar o pacote, a trilha
sonora também é incrível. Criada pelo grande Akira Yamaoka, as composições do
jogo se dividem basicamente em dois grupos: aquelas voltadas para
música-ambiente experimental e aquelas mais melódicas e tradicionais. As
músicas do primeiro grupo podem facilmente ser confundidas com efeitos sonoros,
são colagens de sons e timbres diversos que se preocupam mais em reforçar o
clima dos cenários. A atmosfera é bem industrial e decadente – evidenciada pela
influência que o Yamaoka teve do Trent Reznor – com uso de sons de correntes,
serras, batidas e outros ruídos incômodos e ameaçadores que complementam com
perfeição a estética do pesadelo da Silent Hill alternativa. Já as músicas do
segundo grupo são composições mais tradicionais, com uso frequente de pianos,
sintetizadores e guitarras e com melodias, harmonias e ritmos mais
reconhecíveis. São as obras que dão o contexto emocional do jogo e que definem
um tom melancólico e perturbador – apesar de belíssimo – que enverniza a
história e os personagens com uma camada a mais de drama e mistério. Dentro do
contexto do jogo os dois tipos de música funcionam com uma sintonia incrível,
proporcionando ao mesmo tempo uma experiência mais sensorial e outra mais
emocional. A trilha sonora pode ser considerada um dos pontos mais fortes do
jogo e pra variar foi outro aspecto que influenciou muito do que surgiu no
gênero Terror nos anos seguintes.
O único aspecto do áudio que
destoa um pouco é a dublagem, que tem um tom todo peculiar. Os personagens não
se comunicam de forma realista e entregam seus diálogos com inflexões forçadas
e por vezes engraçadas, junte a isso as pausas desnecessariamente longas entre
uma frase e outra e você tem uma dublagem estranha que oscila entre o perturbador
e o divertido. É possível relativizar a qualidade da dublagem por se tratar de
um jogo do Playstation 1, já que em 1999 jogos com diálogos falados ainda não
eram tão hegemônicos assim e era comum se deparar com trabalhos menos bem
feitos neste sentido (apesar de termos um jogo como Metal Gear Solid com uma
dublagem sensacional sendo lançado um ano antes). No final, porém, a dublagem
acaba colaborando para construir a atmosfera onírica de um mundo perturbador e incompreensível,
e basta lembrar das vozes de alguns personagens dos filmes do já citado David
Lynch para perceber que não é exagero considerar isso um acerto estético.
Mas, se a estética e a direção
artística do jogo são quase unanimemente elogiadas, o mesmo não pode ser dito
da jogabilidade, que é provavelmente um dos aspectos que mais divide o público
acerca dos primeiros Silent Hills. A base do jogo é um survival horror clássico, controlamos o Harry explorando os
cenários coletando diversos itens que são usados para resolver enigmas ou para
avançar no jogo e lidando com os monstros que aparecem, seja apenas fugindo ou
através do combate. O “problema” está na movimentação do personagem, o jogo
utiliza um esquema de controle conhecido como “controle de tanque”, no qual
apertar os direcionais para os lados apenas gira o personagem em um eixo, sendo
necessário apontar pra cima pra que ele ande de fato. O resultado é um controle
altamente indireto, ao contrário de outros jogos (principalmente ação e
aventura) onde o jogador tem total acessibilidade sobre a movimentação do
personagem, podendo movê-lo em qualquer sentido diretamente. Além disso, o
sistema de combate também é altamente inacessível, é necessário um botão para
preparar o ataque e outro para efetuar, sendo que enquanto este primeiro botão
é pressionado o personagem se move muito mais lentamente (ou até mesmo não se
move, dependendo da arma). Isso já dificulta o uso das armas de fogo, mas é um
obstáculo ainda maior para o combate corpo a corpo (com facas, canos, machados
etc), que é necessário se levarmos em conta que a munição não é tão abundante.
A dificuldade com a câmera e com os controles constrói a sensação de perigo constante e desespero |
Aqui voltamos, porém ao que
comentei no primeiro parágrafo deste texto. Os games são uma mídia interativa e
por isso podem usar sua jogabilidade como ferramenta narrativa. O esquema
escolhido para controlar o personagem em Silent Hill é definitivamente truncado
e pouco confortável, porém, acredito ser um erro considerar isso um defeito do
jogo. Neste caso a jogabilidade é o complemento ideal para a temática de horror
e contribui imensamente para a construção da atmosfera o do senso de perigo que
o jogo busca expressar. Harry apesar de tudo é sujeito normal, sem nenhum tipo
de treinamento militar, isso se reflete na dificuldade do próprio jogador com o
combate do jogo. A dificuldade na movimentação, ao se juntar com os ângulos da
câmera e com a escuridão (ou a névoa) resulta em uma experiência altamente
tensa e desconfortável, especialmente em ambientes fechados, onde cada encontro
com os monstros é uma batalha visceral com os controles do jogo, tentando guiar
as corridas incertas do Harry da melhor maneira possível e executar os ataques
no tempo certo de maneira a não sair apenas atirando desesperadamente. O
resultado final é um jogo que nunca fica totalmente acessível, você sempre
sente que pode ser enclausurado pelos controles e pela falta de visibilidade e,
consequentemente, sempre fica um pouco mais tenso e nervoso ao ouvir o som da
estática do rádio. O fato de uma boa parte dos inimigos do jogo tentar
imobilizar o Harry de alguma forma antes de atacar, seja agarrando ou saltando
sobre ele, também contribui para essa ameaça constante da falta de controle e
da claustrofobia.
No final de tudo, porém, arte é
algo subjetivo, e com certeza alguns jogadores acharão os controles apenas
irritantes e pouco responsivos. O jogo anda sobre uma linha tênue entre o
reforçar da sua narrativa e o puramente frustrante, mas acredito que mantenha
um bom equilíbrio na maior parte do tempo. Grande parte dos jogos de terror
mais atuais buscaram atualizar os controles e torna-los mais acessíveis,
resultando em obras que muitas vezes parecem mais jogos de ação ou aventura com
uma estética de terror do que de fato jogos de terror focados na sobrevivência.
A própria franquia Silent Hill passou por esse processo, facilitando a
movimentação, o combate e o controle sobre a câmera em jogos futuros,
resultando em produtos com aprovação muito menor do público e da crítica.
Acredito que boa parte do impacto destes primeiros jogos da saga está
justamente no uso inteligente daquilo que é único à mídia dos games: a
interação física do jogador com o mundo virtual e as sensações e emoções que
essa interação pode gerar. A forma de movimentar o Harry e lidar com as situações
de perigo é tão importante para a narrativa do jogo quanto os diálogos, os
gráficos ou as musicas, mesmo que em um nível inconsciente.
Dead Space foi uma das franquias que tornou o combate cada vez mais dinâmico e acabou se afastando cada vez mais do terror |
O ultimo aspecto da jogabilidade
que precisa ser mencionado são os enigmas. Boa parte deles segue a fórmula
clássica dos jogos “adventure”, ou seja, use o objeto X no local Y para
avançar, com diferentes graus de complexidade e raciocínio. O diferencial do
jogo é a presença de alguns enigmas menos lógicos e mais interpretativos, em um
determinado momento, por exemplo, é preciso ler um pequeno poema e em seguida
tocar uma melodia no piano a partir da interpretação do texto, em outro é
preciso observar imagens e a partir disso descobrir como prosseguir através de
um pensamento mais subjetivo. Essas ocasiões são algumas das mais memoráveis,
pois tiram o jogador da zona de conforto em relação à resolução de enigmas e os
obrigam a parar para refletir de forma mais abstrata.
Os enigmas mais interpretativos são alguns dos pontos altos do jogo |
Por fim, Silent Hill
merecidamente revolucionou o mundo dos games e o gênero do terror como um todo,
trazendo inovações criativas e narrativas e demonstrando um esmero artístico admirável
para um jogo tão antigo. Os frutos que gerou são incontáveis, desde as outras
obras da franquia Silent Hill até as milhares de influências em outras obras
dentro e fora do mundo dos games. O amalgama de influências diversas e o
esforço de toda a equipe em fazer algo realmente especial resultou em um
clássico que continua relevante nos tempos atuais. Acima de tudo, porém, acho
que Silent Hill funciona como atestado de que nem sempre a jogabilidade mais
acessível e agradável é a ideal para todo jogo. A tendência da indústria de
games AAA contemporânea em reciclar formulas e sistemas de sucesso acaba
gerando experiências por vezes muito semelhantes, priorizando a parte visual e
sonora dos jogos em detrimento da experimentação naquilo que é único a está mídia:
a interatividade. Basta lembrar dos aposentos fechados e escuros de Silent Hill
e da dificuldade em movimentar Harry e enfrentar os perigos ao redor para
entender que o terror muitas vezes está justamente na nossa dificuldade em
controlar nossas próprias ações.
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